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É tudo depois: a primeira exposição individual de Mateus Morbeck | Priscila Miraz - Revista Muito, janeiro/2023
Exposição individual aponta à construção coletiva de nova forma de vida a partir de catástrofes ambientais
 
O que vemos quando nos deparamos com um cenário de catástrofe? O que deixamos de ver? Como acessamos em nós as dimensões da memória e de sua relação com os poderes estabelecidos para entender o quanto muitas catástrofes são anunciadas, às vezes, com muito tempo de antecedência?
 
A arte pode redimensionar as experiências e as sensibilidades, ativando no outro a necessidade de se pensar em correlação com o mundo, e nesse movimento de deslocamento do indivíduo, colocá-lo diante da opacidade da imagem como estratégia possível para fazer emergir a necessária indignação crítica frente aos vestígios do que foi destruído, silenciado, perdido.
 
Nos coloca diante da urgência que já se faz antiga, de revermos nossas formas de existir com o mundo, e não de torná-lo sempre recurso a ser explorado, ponto fundante do sistema-mundo da colonialidade que ainda vimemos.
 
A primeira exposição individual de Mateus Morbeck, que esteve aberta para visitação no final de 2022, entre novembro e dezembro, no Ativa Atelier Livre, com curadoria de Lanussi Pasquali e Fábio Gatti, nos desloca para esse lugar desde o título: É tudo depois.
 
E não é óbvia a relação do título com nossa recusa em ver o anúncio das catástrofes ambientais. Ela se desvela no fim. A consciência do que vemos vem depois, atualizando no corpo do espectador o sentido direcionador do projeto, que reuniu cinco trabalhos do artista: a instalação homônima É tudo depois; Era escuro, depois chão; Amanhã também foi assim; Nem tudo é mar e Meia água. O jogo com a cronologia temporal na maioria dos títulos reitera o nosso atraso.
 
Em 2019, Mateus, arquiteto de formação e que havia começado a fotografar em 2017, expandiu sua produção visual, incorporando ao seu processo poético outras técnicas como a monotipia e a instalação, que nessa primeira exposição é central para nos colocar diante de duas grandes catástrofes ambientais que ocorreram em 2019 e 2020 no Brasil.
 
A primeira foi o derramamento de óleo no litoral nordestino, e a segunda, os incêndios no Parque Nacional da Chapada, na Chapada Diamantina. Nos dois casos, o artista esteve nos locais, atuando junto com o Grupo Guardiões do Litoral e com os voluntários brigadistas na Chapada Diamantina.
 
O corpo do artista em movimento nesses espaços recolheu imagens-matérias com a fotografia, a monotipia com papel de aquarela e tecido de lençóis brancos sobre os desenhos do óleo que contaminou as águas do mar, e retirou do solo queimado da Chapada metais que derreteram e se moldaram no solo quente do incêndio criminoso, plantas calcinadas.
 
O trânsito pela exposição, proposto de maneira muito cuidadosa e contundente pela curadoria, começa com Meia Água, monotipias feitas a partir da submersão de papel nas águas contaminadas pelo óleo. As paredes cobertas pela obra, quando vistas a partir de certa distância, como unidade, parece ainda reter algo do movimento lento e constante dos líquidos viscosos quando se espalham. Olhadas de perto, cada quadro guarda sua particularidade inerente à matéria e ao gesto com que foi criado: a textura do óleo acumulado que cria relevos mais escuros, saliências inesperadas no fluir lento e ocre do todo; o vestígio do gesto do artista no momento em que retirou o papel da água e pequenas linhas foram criadas ao longo de outra.
 
Na obra Nem tudo é mar a técnica é a mesma, sendo modificado o suporte, agora lençóis em que o ocre do óleo de torna mais claro, as formas mais abertas. Lentamente as matérias se transforam pelo contato que lhes foi imposto, para além do controle do artista.
 
O papel, o tecido e o óleo seguem reagindo e se modificando. A lentidão dessas transformações indica o movimento do todo, e sem aviso, as imagens recolhidas no mar podem nos conduzir à dança contínua de uma paisagem cósmica, nos lembrando que tudo está conectado. A catástrofe toma uma proporção ainda maior.
 
Na parede em frente a Meia Água foi exposta Amanhã também foi assim, uma paisagem construída pela sobreposição de camadas de fotografias das áreas afetadas pelas queimadas na Chapada Diamantina. Nas imagens predomina o momento depois do fogo, a cor marrom, cinza escura que tomou os espaços como um melancólico entardecer. As fotografias não são todas do mesmo lugar, mas a montagem cria uma linha de horizonte que nos dá a ilusão de ser uma paisagem única. Aqui o artista recorre à fotografia para assegurar a opacidade da imagem e sua capacidade de afetação, e dessa forma faz com que a fotografia apareça não como certeza, mas como montagem a partir de uma realidade cruel, um signo do desconhecido que toma a forma de uma beleza que estranhamos.
 
Era escuro, depois chão é uma instalação em que peças metálicas encontradas no chão foram expostas na parede, sem uma ordem evidente, mas que encaminha do canto direito para o esquerdo, primeiro as peças maiores depois as menores, criando também uma sensação de movimento, em constelação. O artista expõe a face mais rugosa das peças de metal que ficaram em contato direto com a terra, e que carrega as formas criadas pelo solo para comportar em si o material derretido pelo fogo que o transformou. Essas quatro obras são séries de imagens, apresentadas em sequências que nos acompanham para a última obra, É tudo depois.
 
Aqui não temos uma série, aqui temos a singularidade impactante e eloquente de uma única folha carbonizada no centro de uma parede vermelha. Uma folha que mantém sua estrutura reconhecível, mas que já é outra coisa, sofreu uma profunda transmutação em sua materialidade que lhe retirou a vida e a lançou para outro lugar de existência. O vermelho da parede é o vermelho da etapa exatamente anterior à carbonização.
Parados diante dessa única folha, depois de submersos pelas formas lentas e moventes das séries anteriores, os tempos distintos do mundo, o tempo humano e o tempo geológico, entram pelos nossos olhos, pelos nossos poros e, se abertos para a experiência proposta, podemos entender que chegamos depois porque estamos presos em uma racionalidade que insiste em separar, em categorizar, em hierarquizar esse único mundo em que é possível vivermos, a partir de seu valor de mercado.
 
Walter Benjamin afirmou, em 1940, que “a catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história”. Essa racionalidade do sistema capitalista, fundante dos processos de colonização, atrela ainda hoje a necessidade de utilizarmos o mundo como recurso para uma ideia nefasta de progresso e de desenvolvimento. É cada vez mais evidente a inutilidade de seguir correndo atrás do fantasma desse desenvolvimento que parte da dominação. A urgência, já tardia, é de substituirmos a dominação pelo devir-com para quebrar as fronteiras e as classificações, repensar as taxonomias e ativarmos a co-construção de um mundo de compartilhamento, responsabilidades e ética para “todos nós que vivemos e morremos comprometidos na carne uns com os outros”, como afirma Donna Haraway em Quando as espécies se encontram.
 
No mesmo ano da Eco 92, há 31 anos atrás, o sociólogo alemão Wolfgang Sachs disse que “a flecha do progresso está quebrada e o futuro perdeu seu brilho: o que temos pela frente são mais ameaças que promessas”. Hoje essas ameaças se concretizaram e não podem mais ser chamadas de crise ambiental, porque não existe como voltarmos atrás. Como afirmou Bruno Latour, em Diante de Gaia, já sofremos uma profunda mutação em nossa relação com o mundo, o que também foi ressaltado por Fábio Gatti no texto curatorial, quando aponta que as pesquisas ambientais recentes “revelam que o nível destrutivo das ações humanas já pode ser considerado uma mudança de período geológico”.
 
É isso que Mateus Morbeck nos apresenta nessa sua primeira exposição, a urgente necessidade de nos pensarmos com o mundo a partir de outras epistemologias que nos encaminhem para mais perto do sumak kawsay (kíchwa), suma qamarã (aymara); nhandereko (guarani), o que traduzimos como bem viver: construir coletivamente uma nova forma de vida, afirmando modos de existência provenientes de matrizes comunitárias. Só modificando a racionalidade que mantém a lógica exploratória é que poderemos deixar de chegar sempre depois.
Entre a denúncia e a poesia | Fábio Gatti - Texto curatorial da exposição "É tudo depois", novembro/2022
A pandemia que assolaria o mundo ainda não tinha se instaurado. Porém, em um Brasil governado pela extrema-direita já predominavam displicência, negacionismo, genocídio. Ecoando desde 1492 como herança do imperialismo, essas palavras formam uma coluna erigida com argamassa, ferro e sangue. Por onde o pensamento colonial transitou – e ainda transita – ele disseminou suas violências. Nele, as forças de um capitalismo neófito se desenharam com astúcia, de modo a solidificar seu modus operandi: predatório, ilusionista, devastador. Prova disso, manchas de dinheiro cru a boiar nas águas colonizadas dos trópicos chegaram ao Nordeste brasileiro em 30 de agosto de 2019, separando-se pela força das correntezas. No dia 01 de outubro do mesmo ano, as massas de óleo atracaram na praia de Santo Antônio, no município de Mata de São João, litoral baiano. Não tardou para que o óleo se comportasse como o próprio capital: intoxicando e matando as pessoas de fome e os demais seres por falta de ar. A imagem-crime não pertencia a ninguém. Afinal, existe culpa no capitalismo? Há futuro sem Terra? Quanta tragédia compõe um delito? Mesmo após a descoberta da origem do óleo e dos prejuízos envolvidos, não houve responsabilização de fato.
 
Um ano depois, em outubro de 2020, no intervalo entre a primeira e a segunda onda de contaminação pelo novo coronavírus, a Chapada Diamantina sofreu com incêndios de proporções catastróficas. A hipótese sustentada foi a de crime ambiental. Uma vez mais, as pessoas continuavam a ser assassinadas por uma necropolítica explícita do governo federal brasileiro. O afrouxamento das leis regulamentadoras, a bancada ruralista e a troca das chefias de várias seções da rede do SISNAMA (Sistema Nacional de Meio Ambiente) formada pelo Ibama, ICMBio e Inea são algumas das posturas que validam a recidiva da capitalose – infecção generalizada deflagrada por um estado capitalista mórbido. Mas, quanto futuro o dinheiro pode comprar?
 
Pesquisas atuais sobre os impactos ambientais revelam que o nível destrutivo das ações humanas já pode ser considerado mudança de período geológico. Saímos do Holoceno para o Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno ou Chthuluceno[1]. Independentemente da nomenclatura, importa saber que os recursos naturais se esgotam, mais rápido, a cada ano. O aumento dos níveis de substâncias químicas tóxicas usadas, a diminuição drástica de diferentes ecossistemas, a acidificação dos oceanos, o crescimento populacional e a extração de petróleo, bem como a criação sempre maior de matérias-primas para a indústria alimentícia, de moda e farmacêutica, são alguns dos fatores que colocam em risco a recursividade e promovem a grande aceleração[2]. Esse cenário de fim de mundo se torna o substrato com o qual Mateus Morbeck realiza sua produção artística e afirma sua postura política. Para tanto, ele atuou no recolhimento do óleo com o grupo Guardiões do Litoral e acompanhou in situ o trabalho de brigadistas voluntários no combate aos incêndios no Parque Nacional da Chapada.
 
Enquanto bilionários pagam pelo congelamento de seus corpos e/ou cabeças, a fim de serem ressuscitados por empresas de biotecnologia, e investem em projetos que pretendem levar vida humana para Marte até 2050, Bruno Latour[1] afirma inexistir possibilidade de viver ‘fora da Terra’, apenas dentro dela. A ideia de espaço, nutrida pela cinematografia e literatura e responsável por alimentar o imaginário humano até aos anos de 1980, mostrou-se impossível. Não há saída daqui. A esperança de um futuro que não seja bárbaro, como sugerido por Isabelle Stengers (2015)[2], está posta em xeque. No Brasil, os povos originários e a população negra, cujos ancestrais foram escravizados, enfrentam o fim de seus mundos desde a colonização, como bem expôs Carlos Mondragón (2017) ao analisar o extermínio da população ameríndia. A ideia de um processo apocalíptico representa, segundo Mondragón, “o fim do social, e com ele o fim do afetivo, do estético, e do material que fazem distinguir um mundo humano[3]”. Compartilhando desse entendimento e visando chamar atenção à necessidade de manter acesas as relações ecossistêmicas em todas as suas formas, Mateus Morbeck recorre à arte como instrumento de crítica.
 
A exposição é um franco convite à reflexão conjunta sobre os modos de vida; os imperativos do poder e suas reverberações; a inação dos governos mundiais e seus tratados; a aniquilação do futuro no presente; a procrastinação como paradigma; o dinheiro como morte. A organização dos cinco trabalhos aqui apresentados evidencia a ideia defendida por Ailton Krenak, de que a vida não é útil[4], de que o progresso e toda a tecnologia disponíveis não salvarão a Terra se continuarmos a comê-la. Logo, Mateus agencia o tempo como um aspecto decisivo na compreensão de seu discurso visual e poético.
 
Em Amanhã também foi assim, É tudo depois e Era escuro, depois chão, a marcação da passagem do tempo é reorganizada de modo a desvelar a manutenção do extrativismo: as ações produzidas pela repetição contínua, o adiamento deliberado das decisões e os procedimentos cobiçosos das instituições. Por meio da sobreposição de camadas dos dias de incêndio na Chapada Diamantina, Amanhã também foi assim se apresenta como um horizonte, em que cada imagem revela a própria existência e declara que a vida só existe na interrelação dos espaços e do tempo com os seres e a pluralidade de ecossistemas. Nenhuma imagem sozinha é autossuficiente. Todas são interdependentes e suas vidas marcadas pela sociabilidade, e não pela exclusão. É tudo depois, instalação homônima à mostra, sugere uma dinâmica espacial singular: uma folha única, diminuta e carbonizada, dentro de uma cor também específica, ampla e vibrante, embora morta. O cotejo entre sobrevivência e vida, a partir do entendimento proposto por Krenak, é levado à potência máxima. A folha e o espaço criminosamente destituídos de suas qualidades e obrigados a serem apenas memória. Uma lembrança-apagamento: um futuro do pretérito.
 
Era escuro, depois chão revela uma geografia da destruição. Os sobreviventes às queimadas, embora modificados de suas formas originais, são os metais. Recolhidos por Morbeck, eles se apresentam como constelação visual cuja disponibilidade afável no espaço da galeria não apresenta o horror implícito neles. Talvez essas sejam as flores do futuro: permanentes apesar de modificáveis. Quando o céu cair e tudo for esmagado, nem mesmo Omamë[1] poderá ajudar. Enquanto esses trabalhos lidam com a materialidade do fogo e o horror dele advindo, os outros dois, Nem tudo é mar e Meia água, escancaram os problemas capitalistas cujas raízes remontam à prática colonial, de conquista/travessia das águas. Nem tudo é mar faz pensar diretamente na poluição da água pelo óleo cru condensado, mas sobretudo na presença do vento. O mesmo que trouxe as capitanias europeias carregou o petróleo, por quilômetros, espalhando-o por 116 municípios do litoral nordestino.
 
Mateus compra lençóis, corta-os e os usa como suporte de criação. Desfigurado de sua utilidade, o lençol assume novo papel sem se desvincular da ideia de casa, de cama, de descanso. Se a casa do talassociclo é o mar, a ação de Morbeck, de retirar as manchas de óleo por uma espécie de monotipia, acende a discussão sobre a separação fundada na modernidade entre o humano – a humanidade da qual fala Krenak – e a natureza. Os povos originários e outras populações não compreendem a vida humana dissociada da cosmologia, como o fizeram a história, a ciência e a filosofia brancas ocidentais desde a invenção do cristianismo. Meia água oferece elementos dialógicos aproximativos com Nem tudo é mar. Contudo, sua particularidade se dá pela materialidade do papel e pela montagem: a construção de um mapa que manifesta a capacidade destrutiva das minas de petróleo a olho nu. Entre a denúncia e a poesia, Mateus Morbeck tenta ultrapassar o reducionismo maniqueísta da cultura ocidental. Mas, qual a duração de um pesadelo?


[1] Haraway, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf
[2] Pesquisa realizada pelo grupo de trabalho liderado por William Steffen na Conferência de Dahalem, em 2005, que cunhou o termo “a grande aceleração” – nome que sinaliza uma alteração drástica do sistema da Terra, colocando tais eventos fora do intervalo de mudanças esperados de forma natural. No artigo de Steffen et. al., os pesquisadores sinalizaram a existência de 12 marcadores biogeoquímicos e outros 12 socioeconômicos como responsáveis pela grande aceleração. (Steffen, W.; Broadgate, W.; Deutsch, L.; Gaffney, O.; Ludwig, C. The trajectory of the Anthropocene: The great acceleration. The Anthropocene Review 2015, 2, 81. [CrossRef])
[3] Latour, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista De Antropologia, 57(1), 2014, 11-31. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
[4] Stengers, Isabelle. No Tempo das Catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, Coleção EXIT, 2015.
[5] Mondragón, C. Otros fines del mundo. Revista de la universidad de México, Extinción Dossier, nov. 2017. https://www.revistadelauniversidad.mx/articles/999ca022-1584-4941-b584-048c5025adbf/otros-fines-del-mundo
[6] Krenak, Ailton. A vida não é útil. Cia das Letras: São Paulo, 2020.
[7] Davi Kopenawa descreve a queda do céu como a aniquilação da vida. Vida aqui deve ser compreendida a partir da cosmologia Yanomani. Pela mitologia Yanomami, Omamë escondeu os metais dentro da terra e de lá não deveriam ter sido retirados. ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1849409/course/section/474081/pub405-2.pdf
Desde dentro, cru | Fábio Gatti - Texto publicado no livro Maré de Agosto, abril/2021
Segundo a mitologia Yanomami, Omamë escondeu embaixo da terra tanto o ouro quanto outros minérios. Fê-lo em função da ameaça de tais substâncias à vida. Deixou de fora apenas as coisas comestíveis (KOPENAWA apud ALBERT, 1995. p. 32)1. Todos esses minérios são crus, apolares e incapazes de retornarem à sua origem ou de se degradarem quando extraídos e/ou manipulados. Uma vez fora da terra, para sempre dentro da Terra. Desde esse dentro não há saída, tudo é encerrado no mesmo espaço físico no qual a vida acontece. Tudo é dentro: dentro do mundo: dentro da imagem.

O que parece estar acontecendo é similar à privação da consciência de Lucrécia Neves. Ela é o que vê. Viver, para ela, “era somente um carro andando no calor, alguma coisa avançando dia a dia como o que fica maduro” (LISPECTOR, 1998. p.188)2. Nada além de todos os dias, nada além dos eventos visíveis na sua realidade mesma, uma vez que as coisas se apresentam sempre iguais. Sem tempo a postergar, tudo é repetição: os algarismos nos ponteiros do relógio marcando uma mudança inexistente, embora houvesse esperança. Nela, nessa esperança, o real acontece e o legado de Lucrécia fortalece a relevância da ação sobre o pensamento. Sabendo disso, Mateus Morbeck pode compreender que na cidade sitiada “o difícil é que a aparência era a realidade” (LISPECTOR, 1998. p. 70). Nessa cidade, metamorfoseada em outra de si, a repetição se tornou novidade; a repetição se tornou diferença: a outra da mesma. É disso que se alimentam as imagens de Mateus: a repetição do real nele próprio. É aí que a sua ação artística rasga a aparência coincidente com a realidade e o afasta da inconsciência da personagem de Clarice. As fotografias de Mateus produzem uma ficção da realidade para poder pensa-la (RANCIÈRE, 2009. p. 58)3, desde dentro. Por isso, “pensar seria apenas inventar” (LISPECTOR, 1998. p. 189). E inventando formas de visibilidade do comum – a ameaça da vida, a recorrência criminal, o descaso institucional, a política de morte, a força reacionária emergente, a falência dos sistemas modernos de produção –, Mateus as faz para partilhá-las.

Há, no mundo, outro modo de partilhar o sensível senão em sua tautocronia com a realidade? Talvez não e, justamente por isso, as ficções fotográficas de Morbeck alcancem a visão de Lucrécia Neves, para quem “tocar na realidade é o que estremeceria nos dedos” (LISPECTOR, 1998. p.23). Um estremecimento desde dentro. Dificuldade experimentada pelo comum, mas absorvida no particular porque “o saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna” (BONDÍA, 2002. p. 27)4. Para ultrapassar a condição apolar do óleo, Mateus constatou que “a dificuldade era seu único instrumento” (LISPECTOR, 1998. p.22). Achou-a impeditiva e logo depois ela se fez acesso. Sim, “a dificuldade faz o acesso” (NANCY, 2013. p. 417)5 e convida a ver/viver, desde dentro. Com suas imagens, a dificuldade criou “o sentido do acesso a um sentido a cada vez ausente e adiado” (NANCY, 2013. p. 416) porque inesgotável em cada pessoa – o sentido e a poesia de suas imagens estão sempre por se fazerem em nós. Idêntico ao que Bondía (2002, p. 27) percebeu sobre o saber da experiência: se ele “tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber infinito”. Um saber e um fazer partilhados no sensível, capazes de definir “ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009. p.18).

Do litoral à terra, na Terra, as manchas de óleo foram-se aderindo sem delongas às coisas do mundo ali disponíveis, repetidamente. A brisa engrossou, as ondas endureceram e “o sol em vez de revelar as coisas ocultava- as em luz” (LISPECTOR, 1998. p. 17). Tudo ficou escondido e visivelmente contaminado. Na ocultação das coisas, Mateus viu as suas próprias aparições. Fez falar as coisas fotografadas, mesmo irreconhecíveis. Fez das manchas de óleo o argumento visual contraditório entre o fascínio e o crime. Sem tragédia. Desde dentro, cru.


1 ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O ouro canibal. PISEAGRAMA: Belo Horizonte, n. 08, pp. 32 - 41, 2015.
2 LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 191 p.
3 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. 69 p. Trad.: Mônica Costa Netto.
4 BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, [S.L.], n. 19, p. 20-28, abr. 2002. FapUNIFESP (SciELO). https://bit.ly/3a7iqcc. Trad.: João Wanderley Geraldi.
5 NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. Alea: Estudos Neolatinos, [S.L.], v. 15, n. 2, p. 414-422, dez. 2013. FapUNIFESP (SciELO).
https://bit.ly/3ad5pOa. Trad.: Mauricio Mendonça Cardozo.
No rastro da mancha | Victor Uchôa - Texto publicado no livro Maré de Agosto, abril/2021
A mancha escureceu tudo.

Sem aviso, desembarcou na praia, entranhou-se na areia, se apossou das pedras, invadiu manguezais, soterrou os bichos e alarmou a gente.

Era 30 de agosto de 2019 quando ela tocou a costa da Paraíba. As tímidas notícias de então registravam que o óleo cru envelhecido surgira sem que houvesse nenhum alerta de derramamento de navios ou plataformas de extração de petróleo.

A mancha era imensurável.

Como uma espécie de impinge guiada pela maré, foi gradativamente tomando o litoral nordestino, tingindo de preto estado a estado, castigando o ecossistema e encurralando homens e mulheres que vivem do mar.

No curso das correntes marítimas, a mancha alcançou a Bahia. Era primeiro de outubro. Sob o olhar condescendente das autoridades de órgãos ambientais, se espalhou pelo Litoral Norte e invadiu a capital.

Navegando sob a linha de superfície, percorreu toda a costa baiana até chegar a Abrolhos, santuário que abriga a mais extensa bancada de corais e a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul.

A mancha não perdoa a inércia.

E esta só foi rompida por movimentos da sociedade civil: cidadãos e cidadãs comuns que dedicaram dias a fio à tarefa de arrancar o óleo das praias com as próprias mãos, colocando a saúde à prova.

No rastro da mancha, conheci Morbeck, cuja energia se multiplicava: ao mesmo tempo em que limpava as praias, direcionava o foco de suas lentes para a destruição.

Com suas fotografias, revelou cores e texturas de uma tragédia coletiva enfrentada sem descanso pela valentia de alguns. Na pausa de cada imagem, mora o documento que nos condena a todos por um crime que nem ao menos se sabe quem cometeu.  

Enquanto os retratos do desastre viajavam o mundo, trabalhadores e trabalhadoras que tiram o sustento dos mares, estuários e mangues viram-se reféns de um monstro disforme e pegajoso – acontece que a realidade, nestes casos, aterroriza mais que qualquer ficção.

"Ninguém compra nada. Nada. É um desespero. Eu preciso alimentar minhas filhas. Vou jogar esse marisco fora? Não. Mas ninguém quer, o que é que eu vou fazer?", me disse, em total desamparo, a marisqueira Fabiana França.

Enquanto isso, em Brasília, o secretário da pesca do Ministério da Agricultura, herdeiro de uma indústria pesqueira e pouco preocupado com os pescadores artesanais, afirmava que “o peixe é um bicho inteligente”, que foge quando vê uma mancha de óleo.

A mancha pune o descaso.

O Ministério do Meio Ambiente nunca acionou de forma efetiva o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo (PNC), que foi criado em 2013 e deveria ser colocado em prática justamente em momentos como o de 2019.

A União chegou a ativar o Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), comandado pela Marinha. Por lei, este grupo deveria fazer valer o PNC e agregar todos os esforços, inclusive da sociedade civil, para conter o avanço a mancha. A lei nunca foi cumprida.

Nas principais cartilhas do mundo sobre derramamento de petróleo, a prioridade número 1 é conter a substância tóxica no mar. Naquele que se desenhou como o maior desastre na costa brasileira na história, o GAA adotou a estratégia de aguardar o óleo bater na praia para então limpar. Com o argumento de que a mancha se movia submersa, tentava justificar a inação.

Sem satélites ou equipamentos de ponta, utilizando apenas a boa observação e redes de malha fina, pescadores de Canavieiras, no Sul da Bahia, criaram seu próprio sistema de defesa e capturaram, no mar, manchas com dezenas de quilos de óleo, evitando que o contaminante invadisse algumas das maiores reservas de manguezal do país. 

"Espero que nossa organização cause algum constrangimento no governo. Como é que pode ficar só esperando o óleo na praia?", questionava, à época, o pescador Carlos Alberto Pinto. Ninguém ficou constrangido.

Os meses passaram e as investigações da Marinha e da Polícia Federal não deram em nada. Análises laboratoriais atestam que aquele óleo foi extraído na Venezuela, mas, como ele veio parar em nossas praias? Ninguém sabe - ou não nos foi revelado.

Certo é que mais de 1.000 localidades costeiras foram atingidas, nos nove estados do Nordeste e, em menor grau, no Espírito Santo e Rio de Janeiro. Na infeliz balança, quase 6 mil toneladas de óleo cru foram recolhidas das praias, sem contar aí a parcela que se misturou ao ambiente e pode levar décadas para ser naturalmente degradada.

Mais de um ano após aquele primeiro registro na Paraíba, não é raro caminhar por uma praia do Nordeste e voltar com os pés manchados pelo crime e pela vergonha.

Vergonha agora inapagável, graças à memória coletiva e às fotos de Morbeck.

A mancha escureceu tudo.
Azul petróleo | Fabio Gatti - Texto sobre o livro Maré de Agosto
as ondas iguais, diversas no tempo 
vindas e idas coincidentes
o mar repete-se costumeiramente com
nomes específicos para a mesma água
a areia esfoliava o vento, soprando a maresia 

preso à espuma, o sal

imparável
a vida se apresenta no hábito
a repetição se torna novidade
a repetição se torna diferença
o outro do mesmo 

nas horas marcadas pelos algarismos
era dia
agora noite

depois do passado o futuro é presente
os números repetidos
as marolas palimpsestos

em tudo a reincidência metastática
contadas 1+1+6 = 8
o looping
o interminável 

o toque entre as superfícies e
a aderência das substâncias
decalques da infinitude
repetições das águas, ondas, números 

do dano

fotos-contato, fatos-sudário
múltiplos reflexos de um único espelho

amiúdes repetências, mínimas pessoas
de todos os lados, impregnadas
morte, dúvida, vontade e esperança

o horizonte fixo, os olhos arregalados
e um escárnio institucional
contumácia evidente
tragédia ou crime? 

o peso-morto a balbuciar vazios
embora guardiões se levantem

a pele salinizada arde
xawara, calor, horror

amor 

ponteiros inalterados, suspensos
mesmidade sem fim
repetidas diferentes horas e cores
de petróleo e mar
a prova dos nove conclui-se cabal nas
vindas e idas coincidentes
as ondas iguais, diversas no tempo 
Livro Maré de Agosto por Juan Esteves | Publicado no "Blog do Juan Esteves" em junho/2021
Em agosto de 2019 um vazamento do que parecia ser petróleo cru atingiu cerca de 2 mil km das regiões Nordeste e Sudeste da Costa brasileira, uma das maiores tragédias ambientais do país. Segundo especialistas, o derrame teria acontecido em julho, a partir de um navio de bandeira grega. Investigações da Petrobras sobre o tipo de material (uma mistura de óleos específicos) levaram à Venezuela como fonte, mas a responsabilidade do capitão e dos armadores proprietários ou aqueles que o fretaram até agora não é conhecida. Em agosto de 2020, a Marinha do Brasil não encontrou culpados para enquadrá-los na Lei de Crimes Ambientais.

Maré de Agosto (Editora Origem, 2021) é o primeiro livro - mas não uma publicação de principiante - do soteropolitano Mateus Morbeck, que traz diferentes visões para expressar o que sentiu sobre esta tragédia. Uma delas é seu ensaio “Noves Fora” estruturado em imagens abstratas formadas pelas manchas do óleo na água e areia de praias de diferentes estados como Bahia, Piauí, Pernambuco, Maranhão, Ceará, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. Imagens que procuram refletir sobre a tragédia causada não apenas pelo óleo, mas pelo descaso e omissão, antes, durante e depois do desastre, dizem seus editores.

A ideia de se manifestar artisticamente sobre uma tragédia, seja ela natural ou provocada por humanos, é recorrente no amplo escopo da fotografia e da arte, tanto quanto no posicionamento documental de diferentes autores. Caso por exemplo do canadense radicado nos Estados Unidos Robert Polidori, com seus livros sobre o furacão Katrina que devastou New Orleans em 2005, ou mais antigo, de 1983, sobre o acidente devastador da usina nuclear Chernobyl, ao norte da Ucrânia Soviética, com seu impactante livro Zones of Exclusion Pripyat and Chernobyl (Steidl, 2001) [ leia aqui review sobre este livro em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/120624295801/zones-of-exclusion-pripyat-and-chernobyl-robert ].

Polidori passou a abordar estas temáticas a partir de imagens que fez em alguns apartamentos depredados em Nova York, cidade onde mora. Ele conta que quando começou a entrar nos lugares e fotografar ficou convencido de que havia algo intrinsecamente histórico e psíquico sobre o assunto que deveria ser capturado. “Após reflexão posterior, passei a considerar as implicações da cena como evocativas da condição humana em geral.” disse ele em entrevista ao jornal inglês The Independent. Da mesma forma, ele comenta que seu trabalho tem sido frequentemente criticado por falta de integridade: “porque transgride os princípios éticos ao considerar situações trágicas ou violentas artificialmente "belas”. Essa “estetização” é considerada conceitualmente perturbadora, pois, alguns argumentam, ela leva o espectador a uma experiência pela qual as realidades e suas causas são, em última análise, banalizadas e mal representadas.“ Algo a ser pensado.

Mateus Morbeck partiu da data do aparecimento da primeira mancha de óleo em cada estado e suas coordenadas geográficas. Em outra parte do livro, “Guardiões”, estão retratos dos voluntários que ajudaram na limpeza das praias. E, no ensaio “116”, o autor utiliza uma única técnica: “óleo sobre papel”, literalmente, ressignificando a tragédia. “Maré de Agosto” é um livro híbrido, que traz tanto seus trabalhos mais artísticos e autorais, como sua produção documental, mas que tem apenas um objetivo: não nos deixar esquecer do maior desastre ambiental em extensão que se tem notícia no Brasil. Sua forte e contundente palette nos impulsiona a esta preservação da memória mais recente, Morbeck teve seu primeiro contato com a fotografia em 2009, mas foi em 2017 que se deparou com a fotografia artística e, desde então, vem se dedicando à prática e ao estudo das artes visuais. Em seu trabalho, "O autor busca pelo desdobramento da imagem em camadas de significado e percepção, oferecendo diversas possibilidades de interpretação ao observador. ” argumentam seus editores. Já seu trabalho jornalístico e documental foi publicado em grandes veículos da imprensa brasileira como O Globo e Folha de S. Paulo e jornais estrangeiros como The Guardian, El País, Clarín, Le Monde, BBC entre outros.

Para o jornalista e cineasta baiano Victor Uchôa, que escreve um dos textos do livro, o fotógrafo “revelou cores e texturas de uma tragédia coletiva enfrentada sem descanso pela valentia de alguns”. Na pausa de cada imagem mora o documento que nos condena a todos por um crime que nem ao menos se sabe quem cometeu.“ Mais ainda, ele lembra que ” O Ministério do Meio Ambiente nunca acionou de forma efetiva o Plano Nacional de Contingência para incidentes de Poluição por Óleo (PNC) que foi criado em 2013 e deveria ser colocado em prática justamente em momentos como o de 2019.“

Em que pese às dúvidas de Robert Polidori, é certo que somos sensibilizados diariamente pela tragédia. Às vezes por estarmos muito perto dela ou em outras, reverberam um eco distante. Essa interação ora acontece metaforicamente ou literalmente como em casos mais íntimos e pessoais. A tragédia, como diz o escritor Fred Plotkin, faz parte da crueldade humana e é causada por motivações que as maiores obras de arte - incluindo ópera, teatro, cinema, literatura e pintura - nos ajudam a entender de uma maneira que um dogma, ideologia e análise não são capazes. Para ele, o significado e clareza na arte surge do pensamento vai ao encontro do indizível e insondável. Neste aspecto Maré de Agosto torna-se um livro essencial, na pequena produção brasileira deste gênero.

Os registros de Maré de Agosto também aproximam-se destas produções que extrapolam também as artes mais consagradas, ao entrar na discussão de seu mérito pelo público, como por exemplo no editorial de agosto de 2010, "Água e Óleo” criado pela genial italiana Franca Sozzani (1950-2016), diretora da Vogue Itália e fotografado pelo americano Steven Meisel, após a explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, da British Petroleum (BP) no Golfo do México, onde 3,2 milhões de barris de petróleo largaram uma mancha monstruosa que se espalhou rapidamente pelo mar, ao largo de 35 quilômetros. A modelo Kristen McMenamy colocada junto às ondas e às rochas, moribunda, coberta de uma matéria negra tóxica e degradante. As imagens são asfixiantes, dolorosas e perturbadoras.

Para Mateus Morbeck, “A cada registro de novas praias, manguezais e estuários atingidos, as consequências trágicas dos reiterados maus-tratos ao meio ambiente ressaltam a falta de importância dispensada, oficialmente, às questões ambientais e as desigualdades regionais de hoje.” E de fato, como ele mesmo propõe em suas impactantes imagens, ele não mostra apenas registros fotográficos, mas outras novas reflexões sobre a tragédia que assolou o Brasil e vivenciada não só por ele, como por milhões de pessoas nesse período. Vale a sua proposta: “ Registro para que não se esqueça, mostro para que se importe.”

O livro, que também traz texto de Fábio Gatti, teve o apoio financeiro da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia pela Lei Aldir Blanc e foi desenvolvido no âmbito do Ativa Atelier Livre. Foi editado pelo fotógrafo e publisher paulista Valdemir Cunha, projeto gráfico da Editora Origem, edição bilíngue português-inglês, com tratamento de imagem e impressão em papel Eurobulk e Pólen, pela gráfica paulista Ipsis, com realização de Lanussi Pasquali e Ativa Atelier Livre.
Revisão de portfólio sobre o trabalho "Colônia"| Feedback Art Photography Awards 2021
Como revisor, o que procuro ver em cada concurso são ideias originais e uma expressão clara dessas ideias. Além disso, nesta competição, os jurados procuram projetos fotográficos que mostrem um lado mais criativo dos fotógrafos, por imagens que criem uma experiência visual alternativa para o espectador. Estou feliz porque vejo tudo isso neste trabalho. No presente trabalho, você cria uma série alternativa de autorretratos, como um comentário sobre o poder do consumismo e do lucro no homem moderno e, por extensão, na sociedade e no planeta. Seu rosto se torna a tela para capturar toda a situação, e seu rosto deformado destaca o estresse e a opressão que são criados. Definitivamente, é algo que eu nunca tinha visto antes como uma abordagem para esse problema e faz seu trabalho se destacar.

Tematicamente e esteticamente, a coerência entre suas imagens é muito forte. Você oferece uma sensação de unidade ao espectador, o que é muito importante para o sucesso de uma série.

Uma série de imagens é uma narrativa visual. O papel de cada imagem é oferecer algo novo e diferente para potencializar o poder narrativo da obra. Portanto, a diversidade visual de uma série desempenha um papel importante. Aqui, embora a abordagem seja exatamente a mesma em cada imagem, existem todos aqueles elementos que dão a cada imagem a oportunidade de oferecer algo novo. Ao mesmo tempo, você cria emoções no visualizador, semelhantes ao que parece experimentar em seus autorretratos. Isso faz com que as imagens ofereçam uma experiência visual interessante para o visualizador.

A declaração do projeto, especialmente para um projeto como este, é uma parte muito importante de uma inscrição para um concurso ou festival. Ι veja aqui uma declaração bem desenvolvida sobre sua ideia e suas intenções e isso traz mais profundidade para a compreensão do visualizador das imagens.

Caro Mateus, você é um bom fotógrafo com potencial para muito mais e foi um prazer passar algum tempo com suas fotos. Suas fotos têm valor artístico e comercial ao mesmo tempo, então continue com o bom trabalho e ficarei feliz em ver mais de você no futuro.
Revisão de portfólio sobre o trabalho "Nemo non videt"| Feedback Journeys 2020
Escolhi seu portfólio de imagens complexas, intitulado “nemo non videt”, para revisar porque acho que é visual e conceitualmente interessante. Dediquei algum tempo a estudar suas fotos, enquanto observava seu depoimento.

Este grupo de fotos expressa uma sensação de caos, solidão, vazio, medo e desorientação: todas as características que estão amplamente refletidas em nosso mundo agora. As imagens que acompanham são ricas em tons escuros e coloridos que servem como metáforas emocionais e profundamente psicológicas em relação ao seu tópico. Você desorienta o visualizador ao retratar um mundo de arquitetura abstrata, a inversão da gravidade e uma compressão do tempo linear.
As imagens sombrias, por vezes desorientadoras, de espaços e localizações urbanas evocam sentimentos de incerteza. Você descreve perfeitamente o destino do mundo em sua declaração! Há uma sensação de estar em outra dimensão onde não há tons de brilho ou leviandade, há apenas uma variedade infinita de tons cada vez mais escuros de sombra que refletem nossa situação de crise global.

Nessas fotos você traz ao espectador uma experiência em que não podemos mais identificar onde estamos ou para onde vamos. Essas imagens misteriosas podem estar falando sobre um mundo interior onde a poesia visual nos leva a nossos medos, curiosidades e um desejo de saber o que está por vir. Essa visão poética do mundo se alinha muito bem com as imagens que você criou, onde formas puramente abstratas oferecem pouca informação para que o espectador possa agarrar uma palavra, um rótulo ou um conceito para identificar o que vê. Você dá pistas para revelar o que está além da realidade em que vivemos e apresenta espaços fotográficos repletos de abstrações psicológicas e visuais. Queremos saber o que está nas trevas futuras, mas no momento não podemos saber!
Esses mundos internos e externos que você capturou removem os espectadores de seus pontos de vista comumente compreendidos e você os leva para mundos mais surreais. Ao compor, justapor e compor uma sensação de caos nas cenas, você cria composições que promovem sentimentos de incerteza, ambigüidade e desespero. Ao remover o contexto mais amplo dos assuntos, as imagens se tornam muito abstratas. Você coloca o espectador em posição de especular o que (ou onde) está vendo. Por causa disso, as imagens evocam ideias em torno do ponto de vista, percepção e imaginação. Cada foto é uma pista do quebra-cabeça na jornada do herói, onde o desafio é encontrar um caminho que emerge desses tempos sombrios.

De alguma forma, as fotos comunicam ideias sobre a realidade e como ela pode se misturar com a realidade onírica de ambientes psicológicos. Desta forma, há mudança, perigo e um movimento fluido para realidades alternativas. Eu acho que suas idéias e suas observações são fascinantes. Para mim, as imagens são poderosas em grupo, mas também são bonitas como fotos individuais.

Você capturou padrões, texturas e formas que apontam para “lugares” isolados que podem ser difíceis de classificar e definir. Em todas as fotos há uma espécie de ambiente que é um caleidoscópio de luzes e sombras, misterioso e cheio de drama. As imagens também funcionam de forma a comunicar sua experiência ao visualizador. Qualquer pessoa que esteja disposta a deixar de lado sua compulsão de identificar exatamente o que está olhando se relacionará com os sentimentos e emoções que suas imagens comunicam.

Cada uma de suas composições é composta dentro do familiar quadro fotográfico de 35 mm. As formas curiosas parecem ser elementos gráficos em camadas no quadro, despertando a curiosidade do espectador sobre a natureza dos assuntos. As fotos são interessantes porque confundem a linha entre a fotografia e as composições surreais e o design poético. Essas abstrações visuais e visões criativas são personagens claramente importantes em suas histórias. Eu acho que você também está pedindo que o espectador seja sensível o suficiente para olhar profundamente para suas imagens, para ver os detalhes que você incluiu no quadro e para considerar as questões sobre as quais você fala em sua declaração.

Existem fortes traços visuais que percorrem claramente o seu portfólio e o primeiro é “cor”. Sua fotografia busca capturar a magia que tons vibrantes, luz e sombra podem comunicar. Acho que a maneira como você usa as cores fala sobre o mistério dessas estruturas à medida que surgem do caos, praticamente ausentes dos humanos. Você usa a cor como uma ferramenta alquímica transformacional para transmutar o que vê no que gostaria que os outros vissem. Outros fios são formas arquitetônicas de luz, linhas e padrões. Em todas as fotos, o ponto de vista é completamente indefinido, como se a perspectiva do observador estivesse mudando dentro da realidade que eles veem nas fotos.

Outro segmento importante é a desorientação. Essas fotos são profundamente misteriosas porque são muito desorientadoras. Como os assuntos nessas fotos não são imediatamente presos pela gravidade, você captura imagens que vão direto à imaginação do visualizador. Por exemplo, cada foto é dramática, rica em possibilidades e evoca sentimentos de confusão. Sua justaposição de elementos visuais torna as fotos visualmente poéticas - camadas de pontos de vista e perspectivas derretendo em um reflexo líquido - da mesma forma que podemos ver em um sonho.

Posso imaginar essas fotos impressas em tamanho grande, para inspirar sentimentos de admiração, criando uma sensação de escala para o observador. Uma apresentação em grande escala pode fazer com que o espectador se sinta pequeno quando confrontado com as ideias de ficar diante dessas misteriosas composições de luz, sombra e forma. Os espectadores se sentiriam confrontados com a sensação de perspectivas inesperadas e interpretações criativas, especialmente em relação à sua declaração.

Suas imagens são muito dinâmicas. Eles estão cheios de observações e perguntas sobre as emoções humanas, psicologia, percepção, imaginação e nosso futuro! Suas imagens provam que ser observador e criativo é muito empolgante e quem sabe aonde isso vai levar.

Sua linguagem visual é poética e usa a escuridão para falar sobre os estados internos e externos do mundo e as emoções e coisas que associamos ao desconhecido. Espero que meu comentário acima explique suficientemente mais sobre sua pergunta.

Suas imagens e seu projeto são muito instigantes e criativos. Eles estão cheios de histórias esperando para serem descobertas! Eu o encorajaria fortemente a continuar perseguindo seu interesse em explorar essas idéias de encontrar ordem no caos nestes tempos incertos.
"Colônia" por Oscar D'Ambrosio | Publicado na Revista Artrilha 3
O mundo está em transformação. Essas mudanças, que afetam o nosso cotidiano, encontram uma expressão na Série “Colônia”, de Mateus Morbeck, que apresenta o isolamento gerado pelo novo coronavírus, pela Covid-19 e pela pandemia sob uma perspectiva da construção de uma visualidade. O trabalho consiste na criação de imagens que partem de autorretratos escaneados, aos quais são sobrepostas manchas aleatórias surgidas quando “comprovantes de consumo” são esterilizados com álcool a 70%. Surgem grafismos, letras e marcas que evocam tatuagens ou escarificações, cicatrizes no corpo feitas em algumas culturas com instrumentos cortantes. O artista cria assim imagens de novas peles em si mesmo. As faces apresentadas são uma poética expressão do “novo normal” pós-pandêmico, ou seja, um ser que sai com marcas, mas que pode se reinventar para construir o futuro. 
"Nemo non videt" por Jonatas Tosta Barbosa | Publicado no Catálodo do 1º Salão de artes visuais da Galeria IBEU
Talvez declarasse aqui alguma sobreposição, caso as imagens servissem de fundo uma a outra. Negativo. Aqui nos serve o termo matrimônio. Não pela justeza ou adequação da circunstância, e sim, porque comungam, estabelecem contato mútuo, matricial. A insinuação de vacuidade que orna armações de concreto, de sucessão espelhada pelo vidro morto. Alarga rodovias verticais, cornijas entrecortadas por estradas, a impressão dos olhos incansáveis de satélites, e o simulacro cartográfico dos eventos de contaminação em escala global. Assiste às núpcias, degradações sucessivas, cinzentas, mas sem negar o céu. Induzem o presente à convergência, à aceitação. À certa fatalidade da inspiração.


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