Exposição individual aponta à construção coletiva de nova forma de vida a partir de catástrofes ambientais
O que vemos quando nos deparamos com um cenário de catástrofe? O que deixamos de ver? Como acessamos em nós as dimensões da memória e de sua relação com os poderes estabelecidos para entender o quanto muitas catástrofes são anunciadas, às vezes, com muito tempo de antecedência?
A arte pode redimensionar as experiências e as sensibilidades, ativando no outro a necessidade de se pensar em correlação com o mundo, e nesse movimento de deslocamento do indivíduo, colocá-lo diante da opacidade da imagem como estratégia possível para fazer emergir a necessária indignação crítica frente aos vestígios do que foi destruído, silenciado, perdido.
Nos coloca diante da urgência que já se faz antiga, de revermos nossas formas de existir com o mundo, e não de torná-lo sempre recurso a ser explorado, ponto fundante do sistema-mundo da colonialidade que ainda vimemos.
A primeira exposição individual de Mateus Morbeck, que esteve aberta para visitação no final de 2022, entre novembro e dezembro, no Ativa Atelier Livre, com curadoria de Lanussi Pasquali e Fábio Gatti, nos desloca para esse lugar desde o título: É tudo depois.
E não é óbvia a relação do título com nossa recusa em ver o anúncio das catástrofes ambientais. Ela se desvela no fim. A consciência do que vemos vem depois, atualizando no corpo do espectador o sentido direcionador do projeto, que reuniu cinco trabalhos do artista: a instalação homônima É tudo depois; Era escuro, depois chão; Amanhã também foi assim; Nem tudo é mar e Meia água. O jogo com a cronologia temporal na maioria dos títulos reitera o nosso atraso.
Em 2019, Mateus, arquiteto de formação e que havia começado a fotografar em 2017, expandiu sua produção visual, incorporando ao seu processo poético outras técnicas como a monotipia e a instalação, que nessa primeira exposição é central para nos colocar diante de duas grandes catástrofes ambientais que ocorreram em 2019 e 2020 no Brasil.
A primeira foi o derramamento de óleo no litoral nordestino, e a segunda, os incêndios no Parque Nacional da Chapada, na Chapada Diamantina. Nos dois casos, o artista esteve nos locais, atuando junto com o Grupo Guardiões do Litoral e com os voluntários brigadistas na Chapada Diamantina.
O corpo do artista em movimento nesses espaços recolheu imagens-matérias com a fotografia, a monotipia com papel de aquarela e tecido de lençóis brancos sobre os desenhos do óleo que contaminou as águas do mar, e retirou do solo queimado da Chapada metais que derreteram e se moldaram no solo quente do incêndio criminoso, plantas calcinadas.
O trânsito pela exposição, proposto de maneira muito cuidadosa e contundente pela curadoria, começa com Meia Água, monotipias feitas a partir da submersão de papel nas águas contaminadas pelo óleo. As paredes cobertas pela obra, quando vistas a partir de certa distância, como unidade, parece ainda reter algo do movimento lento e constante dos líquidos viscosos quando se espalham. Olhadas de perto, cada quadro guarda sua particularidade inerente à matéria e ao gesto com que foi criado: a textura do óleo acumulado que cria relevos mais escuros, saliências inesperadas no fluir lento e ocre do todo; o vestígio do gesto do artista no momento em que retirou o papel da água e pequenas linhas foram criadas ao longo de outra.
Na obra Nem tudo é mar a técnica é a mesma, sendo modificado o suporte, agora lençóis em que o ocre do óleo de torna mais claro, as formas mais abertas. Lentamente as matérias se transforam pelo contato que lhes foi imposto, para além do controle do artista.
O papel, o tecido e o óleo seguem reagindo e se modificando. A lentidão dessas transformações indica o movimento do todo, e sem aviso, as imagens recolhidas no mar podem nos conduzir à dança contínua de uma paisagem cósmica, nos lembrando que tudo está conectado. A catástrofe toma uma proporção ainda maior.
Na parede em frente a Meia Água foi exposta Amanhã também foi assim, uma paisagem construída pela sobreposição de camadas de fotografias das áreas afetadas pelas queimadas na Chapada Diamantina. Nas imagens predomina o momento depois do fogo, a cor marrom, cinza escura que tomou os espaços como um melancólico entardecer. As fotografias não são todas do mesmo lugar, mas a montagem cria uma linha de horizonte que nos dá a ilusão de ser uma paisagem única. Aqui o artista recorre à fotografia para assegurar a opacidade da imagem e sua capacidade de afetação, e dessa forma faz com que a fotografia apareça não como certeza, mas como montagem a partir de uma realidade cruel, um signo do desconhecido que toma a forma de uma beleza que estranhamos.
Era escuro, depois chão é uma instalação em que peças metálicas encontradas no chão foram expostas na parede, sem uma ordem evidente, mas que encaminha do canto direito para o esquerdo, primeiro as peças maiores depois as menores, criando também uma sensação de movimento, em constelação. O artista expõe a face mais rugosa das peças de metal que ficaram em contato direto com a terra, e que carrega as formas criadas pelo solo para comportar em si o material derretido pelo fogo que o transformou. Essas quatro obras são séries de imagens, apresentadas em sequências que nos acompanham para a última obra, É tudo depois.
Aqui não temos uma série, aqui temos a singularidade impactante e eloquente de uma única folha carbonizada no centro de uma parede vermelha. Uma folha que mantém sua estrutura reconhecível, mas que já é outra coisa, sofreu uma profunda transmutação em sua materialidade que lhe retirou a vida e a lançou para outro lugar de existência. O vermelho da parede é o vermelho da etapa exatamente anterior à carbonização.
Parados diante dessa única folha, depois de submersos pelas formas lentas e moventes das séries anteriores, os tempos distintos do mundo, o tempo humano e o tempo geológico, entram pelos nossos olhos, pelos nossos poros e, se abertos para a experiência proposta, podemos entender que chegamos depois porque estamos presos em uma racionalidade que insiste em separar, em categorizar, em hierarquizar esse único mundo em que é possível vivermos, a partir de seu valor de mercado.
Walter Benjamin afirmou, em 1940, que “a catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história”. Essa racionalidade do sistema capitalista, fundante dos processos de colonização, atrela ainda hoje a necessidade de utilizarmos o mundo como recurso para uma ideia nefasta de progresso e de desenvolvimento. É cada vez mais evidente a inutilidade de seguir correndo atrás do fantasma desse desenvolvimento que parte da dominação. A urgência, já tardia, é de substituirmos a dominação pelo devir-com para quebrar as fronteiras e as classificações, repensar as taxonomias e ativarmos a co-construção de um mundo de compartilhamento, responsabilidades e ética para “todos nós que vivemos e morremos comprometidos na carne uns com os outros”, como afirma Donna Haraway em Quando as espécies se encontram.
No mesmo ano da Eco 92, há 31 anos atrás, o sociólogo alemão Wolfgang Sachs disse que “a flecha do progresso está quebrada e o futuro perdeu seu brilho: o que temos pela frente são mais ameaças que promessas”. Hoje essas ameaças se concretizaram e não podem mais ser chamadas de crise ambiental, porque não existe como voltarmos atrás. Como afirmou Bruno Latour, em Diante de Gaia, já sofremos uma profunda mutação em nossa relação com o mundo, o que também foi ressaltado por Fábio Gatti no texto curatorial, quando aponta que as pesquisas ambientais recentes “revelam que o nível destrutivo das ações humanas já pode ser considerado uma mudança de período geológico”.
É isso que Mateus Morbeck nos apresenta nessa sua primeira exposição, a urgente necessidade de nos pensarmos com o mundo a partir de outras epistemologias que nos encaminhem para mais perto do sumak kawsay (kíchwa), suma qamarã (aymara); nhandereko (guarani), o que traduzimos como bem viver: construir coletivamente uma nova forma de vida, afirmando modos de existência provenientes de matrizes comunitárias. Só modificando a racionalidade que mantém a lógica exploratória é que poderemos deixar de chegar sempre depois.